Eu adoro esse texto e na próxima postagem
coloco o final que eu dei para o texto.É do Ignácio Loyola Brandão.
Estava escrevendo, sentiu a
orelha pesada. Pensou que fosse cansaço, eram 11 da noite, estava fazendo
hora-extra. Escriturário de uma firma de tecidos, solteiro, 35 anos, ganhava
pouco, reforçava com extras. Mas o peso foi aumentando e ele percebeu que as orelhas
cresciam. Apavorado, passou a mão. Deviam ter uns dez centímetros. Eram moles,
como de cachorro. Correu ao banheiro. As orelhas estavam na altura do ombro e
continuavam crescendo. Ficou só olhando. Elas cresciam, chegavam a cintura.
Finas, compridas, como fitas de carne, enrugadas. Procurou uma tesoura, ia
cortar a orelha, não importava que doesse. Mas não encontrou, as gavetas das
moças estavam fechadas. O armário de material também. O melhor era correr para
a pensão, se fechar, antes que não pudesse mais andar na rua. Se tivesse um
amigo, ou namorada, iria mostrar o que estava acontecendo. Mas o escriturário
não conhecia ninguém a não ser os colegas de escritório. Colegas, não amigos.
Ele abriu a camisa, enfiou as orelhas para dentro. Enrolou uma toalha na
cabeça, como se estivesse machucado.
Quando chegou na
pensão, a orelha saia pela perna da calça. O escriturário tirou a roupa.
Deitou-se, louco para dormir e esquecer. E se fosse ao médico? Um
otorrinolaringologista. A esta hora da noite? Olhava o forro branco. Incapaz de
pensar, dormiu de desespero.
Ao acordar, viu aos
pés da cama o monte de uns trinta centímetros de altura. A orelha crescera e se
enrolara como cobra. Tentou se levantar. Difícil. Precisava segurar as orelhas
enroladas. Pesavam. Ficou na cama. E sentia a orelha crescendo, com uma
cosquinha. O sangue correndo para lá, os nervos, músculos, a pele se formando,
rápido. Às quatro da tarde, toda a cama tinha sido tomada pela orelha. O
escriturário sentia fome, sede. Às dez da noite, sua barriga roncava. A orelha
tinha caído para fora da cama. Dormiu.
Acordou no meio da
noite com o barulhinho da orelha crescendo. Dormiu de novo e quando acordou na
manhã seguinte, o quarto se enchera com a orelha. Ela estava em cima do
guarda-roupa, embaixo da cama, na pia. E forçava a porta. Ao meio-dia, a orelha
derrubou a porta, saiu pelo corredor. Duas horas mais tarde, encheu o corredor.
Inundou a casa. Os hospedes fugiram para a rua. Chamaram a polícia, o corpo de
bombeiros. A orelha saiu para o quintal. Para a rua.
Vieram os
açougueiros com facas, machados, serrotes. Os açougueiros trabalharam o dia
inteiro cortando e amontoando. O prefeito mandou dar a carne aos pobres. Vieram
os favelados, as organizações de assistência social, irmandades religiosas,
donos de restaurantes, vendedores de churrasquinho na porta do estádio,
donas-de-casa. Vinham com cestas, carrinhos, carroças, camionetas. Toda a
população apanhou carne de orelha. Apareceu um administrador, trouxe sacos de
plástico, higiênicos, organizou filas, fez uma distribuição racional.
E quando todos
tinham levado carne para aquele dia e para os outros, começaram a estocar.
Encheram silos, frigoríficos, geladeiras. Quando não havia mais onde estocar a
carne de orelha, chamaram outras cidades. Vieram novos açougueiros. E a orelha
crescia, era cortada e crescia, e os açougueiros trabalhavam. E vinham outros
açougueiros. E os outros se cansavam. E a cidade não suportava mais carne de
orelha. O povo pediu uma providência ao prefeito. E o prefeito ao governador. E
o governador ao presidente.
E quando não havia
solução, um menino, diante da rua cheia de carne de orelha, disse a um
policial: "Por que o senhor não mata o dono da orelha?"